quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Coisas do outro Mundo .

Vai rareando o número de pessoas que atravessaram
o quarto de século e, que a custo, vão acertando o re-
lógio da vida .

Para quem nasceu em 1942, no meio semi-rural, no
auge de uma guerra total sangrenta e interminável, 
viu muita coisa, mesmo se comparado com o que con-
seguiria alcançar noutro tempo e noutro lugar e com 
muito mais meios ao seu dispor que, apesar de tudo 
existiam noutras sociedades mais desenvolvidas .

Mesmo estando longe, sentiam-se ainda os ecos da Gue
rra Civil de Espanha, sobretudo a partir da propagan-
da emanada dos noticiários dos jornais e da rádio .

Um pouco mais tarde, recordo a chegada dos refugiados,
crianças vindas no Norte da Europa, muitos deles órfãos
que procuravam abrigo e algum aconchego, dadas as con-
dições de vida em muitos dos países beligerantes .

Eram recebidos com desvelo, por todo o País, e alguns,
muitos por cá ficaram e cá iniciaram uma nova vida .

Assistia incrédulo ao contrabando do fioco, fibra têxtil de
baixa qualidade, e do volfrâmio, metal indispensável para
o esforço de guerra, que dos alemães, quer dos Aliados .

Coisas estranhas mas que faziam o dia a dia de toda a gen-
te, novos, velhos e crianças, sobretudo do Centro e Norte 
de Portugal .

O Volfrâmio Eram transacionados pelos dois lados da guer-
ra, havia le-giõe de gente que percorria o país, de saco de se-
rapilheira às costas, e dessa busca  faziam  o seu principal 
meio desubsistência quotidiana .

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Ferro velho, farrapos, papel, peles de coelho .

Ferro velho, farrapos, papel, peles de coelho .

Vinham de longe, das aldeias, com o saco às costas, chegavam
Vila, sempre com esta cantilena, poisavam a tralha na loja do
meu tio Alberto, um autêntico bazar, desde a  tasca e os comes 
e bebes, para os que vinham à feira, ao médico e ao tribunal,
até às barricas de bacalhau demolhado, o arroz e o açúcar, 
e tudo o resto,
e depositavam no chão o espólio recolhido, na esperança de al-
guma peça mais valiosa, de cobre ou de outro material com al-
gum valor comercial .

Ainda não tinha sido construída a siderurgia nacional, os per-
tences recolhidos iriam para pequenas fundições, para Lidboa
ou para o Norte do País .

Havia também algum interesse por certas alfaias para reutiliza-
ção ou para alimentar o vício de algum coleccionador, gente es-
tranha para a época .

Toda a gente aproveitava tudo, procurava-se em todos os bura-
cos, objectos do passado, candeeiros, alfaias de pequeno porte,
lâmpadas velhas, pregos, parafusos, enxadas, peças avulsas, acha-
das ao acaso, sempre se apanhavam uns magros tostões para os
cromos da bola, ou alguma coisa de comer .

Era esta a minha vivência no pós guerra, cheio de dificuldades,
mas prenhe de aventuras e brincadeiras de toda a espécie .



A fome que sobra à riqueza
dividida com razão
matava a fome à pobreza
e ainda sobrava pão 

Não me lembro de ter passado fome, em toda a minha vida .
Levávamos uma vida austera, mas regrada .
Não havia lugar para lambarices .

Muita gente vivia da agricultura de subsistência . Quase todos 
tinham um pedaço para cultivar, outros eram mesmo pequenos
agricultores ou trabalhavam a terra por conta de outrem .

Portugal era, sempre foi, um País pobre, com enrmes insuficiên-
cias, e a Guerra veio complicar ainda mais as coisas .

A tuberculose grassava em força, eu e o meu irmão mais velho
fomos apanhados nessa ratoeira .
O consultório do Dr. Melo, que nos aos 40, dispunha de um apa-
relho de radioscopia, estava sempre pejado de doentes, muitos 
deles vinha de longe, de táxi, que naquela altura eram denomina-
dos carros de praça, que a todos tratava com enorme desvelo .

Lembro-me de apanhar muitas injecções na veia, sacrifício depois
resarcido com os mimos da Tia Lurdes e com os santos, caixas e
serrinhas que ela me dava .

Não foi fácil o meu relacionamento com o médico e com o consultó-
rio; para levar a primeira pica, fugi a sete pés da mão de uma das 
minhas tias, e só um binómio da GNR me conseguiu deitar a mão .

Foi então que a palhaçada abrandou um pouco mais, pois era obri-
gado a fazer repouso todos os dias, depois do almoço .

Aí começou o meu fascínio pela arte, pois que, deitado no divâ, tinha
imenso tempo para observar sonhar com as gravuras que o tempo e a
chuva iam desenhado no tecto da sala .

Foi aí que tudo começou ...

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