domingo, 3 de dezembro de 2017

A MINHA MÃE .

A vida, 
foi a minha MÃE que ma deu .


É muito difícil evocar a minha Mãe, a Maria Olinda, 
como o meu Pai, carinhosamente, a tratava .
Eu sempre a tratei por

  Mãezinha .

Ela sim, é que teve uma vida difícil, complicada, dividida
com mil cuidados, entre os cinco filhos que criou, e o ca-
rinho do meu Pai .

Vivia-se naquela época com enorme austeridade .
Esquecida pelos meus avós paternos, que nunca aceitaram 
casamento, por questões de natureza religiosas .

Casou muito nova, com os filhos a sucederem-se, uns a se-
guir aos outros, sem ser tempo de intervalar um pouco,

Tenho uma recordação pouco nítida dessa altura, com os ir-
mãos muito pequenos, e com as deslocações que os meus 
Pais faziam, por razões de emprego do meu Pai,  e que às ve-
zes a acompanhava .

Vivia deste modo, um pouco ao Deus 
dará,

sempre enquadrado pela família mais chegada .

Sempre me senti um pouco abandonado,
e fui desmamado muito cedo, que outro irmão já estava à 
espera . 

Mais tarde, tudo se viria a complicar muito mais, com a gi-
nástica que os meus Pais faziam para encontrar colocação 
escolar, para cinco filhos, que deambulavam de escola, pa-
ra escola e de terra, para terra, como se se tratasse de uma 
gincana vital .

Só muito mais tarde tomei verdadeira consciência das difi-
culdades e das provações por que a minha Mãe (e o meu 
Pai, claro), foram passando, todos esses anos . 

Entre gravidezes e partos, e toda uma série e deslocações, a 
ajudar a grandes problemas económicos, não foi nada fácil a 
vida da minha querida Mãe .

O roteiro das andanças da minha família começava em Seia,
a terra de toda a tribo, e passava por Lisbos, várias vezes, pelo
Tortosendo, Covilhã, Castelo Branco, Guarda, e mais outra
 vez, Lisboa .

Andávamos sempre com a casa às costas, como os caracóis .

A mudança de habitação era uma autêntica operação mili-
tar . Uma das minhas missões, era desaparafusar e voltar a 
aparafusar os parafusos das camas em que dormíamos, já 
gastos com o uso .

Quem tem filhos, tem cadilhos,
quem os não, cadilhos tem .


Cada filho é sempre único .

Todos são filhos únicos, mas o último a nascer, é mais único
do que os outros . E esse é o rei durante um certo tempo, e re-
cebe as suas benesses .
Logo, logo, vinha outro, que depressa se tinha que fazer à vida .

O meu Pai tirou a 4ª. classe, e aos dez anos começou a trabal-
har, no escritório do advogado Dr. Calixto Pires, uma pessoa 
de grande categoria e prestígio, que desde logo o adoptou para 
seu ajudante . 
Mais tarde, ele e esposa, a Dona Noémia, viriam a ser os padri-
nhos de casamento dos meus Pais .

A minha Mãe ( ainda me lembro de a ouvir cantar no côro da
Igreja de Seia), era a primeira solista, com uma voz maravilho-
sa, diziam as pessoas da família e os amigos mais chegados, que
só a Amália Rodrigues cantava melhor .
Cantava todo o tipo de música portuguesa e as mais conhecidas 
da música internacional, mas a sua grande paixão era o Fado .

.

Quase toda a minha família, quer do lado do meu Pai, quer do
lado da minha Mãe, tinha vocação para a música 
O meu Avô paterno, José Alves Garcia, era exímio a tocar a con-
certina, o antepassado do acordeão .
O meu Pai, aos dez anos, era o primeiro clarineta na Banda de
Seia .
Os meus tios e tias, elas cantavam quase todas, e eram muitas, 
na Igreja . Eles distribuia-se pelos mais varidados instrumentos ,
sobretudo os de sopro . Lembro-me do meu tio António, que to-
cava trombone .

O meu Pai era o homem dos sete 
instrumentos .

Na altura, havia a moda chamados conjuntos de Jazz, que abril-
hantavam as festas na Vila e por todo o Concelho de Seia .

O meu Pai, tanto quanto eu me lembro, dedicou-se de seguida ao 
saxofone, num dos grupos com maior sucesso desse tempo, que se
designava o ROMPE E RASGA , uma verdadeira preciosidade, 
um nome tirado do futuro,  bem à maneira à maneira dos moder-
nos  Grupos de Rock .

Não me recordo muito bem como surgiram láem casa os instru-
mentos de corda . Lembro-me de durante as minha escavações na 
loja do meu Avô, que tudo albergava e onde eu passava longas es-
tadias de pesquisa, onde descobria coisas espantosas, ter encontra-
do um banjo, uma viola e um bandolim .
Portanto é porque era normal que alguém os tocasse .
* Mas deve ter sido em Lisboa, quando o meu  Pai trabalhava num 
armazém de lanifícios, na Rua Bernardim Ribeiro, onde vivia 
comoutros hóspedes, que começou a tocar guitarra, acompanhando 
alguns cantores, entre os quais, o nosso grande amigo, o senhor 
Francisco Silva, dono de uma voz espantosa e que cantava Ópera 
no São Carlos, como amador .

Seriam dessa altura, as grandes farras e cantorias, onde o Pai Plá-
cido, desenvolveu a técnica de tocar viola, e depois guitarra, a qual
viria a ter um lugar importante na nossa vida .

O meu chegou a ter lições com os melhores guitarristas de Fado,
de Lisboa, e começou a frequentar as várias casas de, e, por vezes,
a tocar com outros guitarristas, melhorando a sua perfomance ,
experiência que iria ser importante mais tarde .

.

Tinha terminado a nossa longa e difícil vida de transumância, pelo
menos para os meus Pais .
Havíamos  um dia partido de Seia , passámos 2 ou 3 vezes por Lis-
boa, e, quando o meu Pai se fixou no Tortosendo, ´para trabalhar
na fábrica de lanifícios dos Pontífices, aí poisámos um ano. 

Depois experimentámos um ano um ano em Castelo Branco, estabe-
lecemo-nos na Covilhã, após termos vivido em 4 casas no Tortosendo .

Com a construção da nossa casa naquela aldeia vermelha, lá aterrá-
mos de vez .

Muito confuso, não é ?.

Agora tentem só uma aproximação à realidade, para terem uma ideia
do esforço feito por todos nós, e, em especial, pela minha Mãe .

Tortosendo 

era o que agora chamaríamos um study case, com cerca de 20 fábricas, 
apitando, desalmadamente vezes sem conta, de manhã até à tardinha, 
pontuando ferozmente os turnos do trabalho fabril .

Tinhamos agora uma casa nossa, novinha em 
folha, com quintal e tudo,
muitos cães, abelhas, garagem, um enorme jar-
dim, um poço e até uma adega . 
Tudo à maneira, 

pena foi que o sonho tão esforçadamente erguido, tenha demorado tão
pouco tempo a gozar ...

Entretanto, a música e o canto tinham feito o seu caminho .
Quase todos os dias havia ensaio dos Fados e Guitarradas .
O ensino do solfejo e dos instrumentos há muito que se processava, com
a minha Mãe a cantar os fados que o meu Pai mais gostava, acompanha-
dos por dois dos meus irmãos .
Até a minha Mãe aprendeu a tocar viola .

Foi a melhor fase da nossa vida .
.

Havia agora espaço para deixar colocar as peças do jogo da vida, sem ter 
que andar sempre a andar a trocá-las física e emocionalmente, com medo 
de nova mexida .

A criação de um grupo de fados e guitarradas
um conjunto musical, de que o meu Pai era o chefe da orquestra, tocando
Guitarra portuguesa e Acordeão, a minha Mão era a Solista principal e os
meusmãos, os guitarristas residentes .

Havia depois os elementos permanentes,  que se tocavam em nossa casa, per-
mutando, por vezes,  nas casas de uns, e do outros, trocando experiências, 
e  exibindo as suas habilidades .

Por vezes tocavam em certos lugares públicos, mas em ambientes familiares,
como era o caso do Ginásio da Covilhã .

Foi uma época mais sossegada, liberta de grandes problemas, e com os filhos já
crescidos, que a música veio a ter um papel central na nossa vida .

Digo nossa, impropriamente, pois que eu ficara libertado dessas ocupações mu-
sicais . Nunca tive propensão para o estudo das notas (musicais),mas gostava de
tocar acordeão, de  um modo instintivo . Tocava de olhos fechados como o galo, 
mas só com a mão esquerda . 

Foi então que, inopinadamente o meu Pai me informou que eu ia estudar para a
escola da noite, para tirar o curso de Debuxador, uma espécie de Técnico têx-
til,  Foi um grande choque, em todas as vertentes, mas duas tornaram-se vitais
para mim :

á não tinha que estudar música,
e passei a ter uma vida própria, que quase só 
dependia de mim .

Contudo, as coisas ficaram muito baralhadas na minha cabeça .

De repente, deixei de ser adolescente, 
e entrei no mundo dos adultos .

Mais uma vez, senti que a minha Mãe ia ficar mais longe de mim .

Preparava-me o pequeno almoço bastante cedo, e eu lá ia para o
Colégio Moderno, a subir a Calçada Alta .
Servia-me o jantar, que eu devorava à pressa e logo partia para a 
Noite, para estudar à a noite .

Quando regressava, já toda a gente dormia, 
mas a minha Mãe deixava-me sempre uma caneca com leite ou 
com chá, para eu tomar , antes de me ir deitar .

Via-a tempo, mas ao menos eu sabia que ela estava lá, sempre co-
migo, para o que desse e viesse .
.


Tinha começado a minha fase de esquizofrenia .

De dia, rapaz,
homem, depois do jantar .

Sempre fui o filho mais chegado à minha Mãe .
Havia coisas que nos ligavam fortemente .
Não me lembro de alguma vez ter ralhado ou discutido com ela .
Havia sempre uma maneira de resolver os problemas, nem que fosse pelo
silêncio . Eram-mos duas pessoas muito reservadas e contidas, com dificul-
dade exprimir o que sentíamos . 
Depois havia a partilha da ansiedade, sempre presente em tudo .

Era o único dos meus irmãos que largava a brincadeira, para fazer compan-
hia à minha Mãe, nas longas e sofridas horas de espera até que o meu Pai 
chegasse a casa . 

Era uma agonia, sobretudo quando ele ia para longe para a caça, ou quando
atravessava a Serra, cortando a tempestade, sempre em grande velocidade .

Uma vez  fomos passar o Fim de Ano, a casa dos compadres dos meus Pais, 
em Vila Franca das Naves, perto de  Trancoso, (a terra do Bandarra) .
Regressámos tarde, em dois carros, que a meio do caminho se desencontra-
ram . O meu Pai guiou acelerou mais um pouco, e de repente ouvimos o car-
ro a arrastar pela estrada, completamente desequilibrado, e faiscando ao su-
bir a estrada, e numa curva .  .

Tinha saltado uma das rodas traseiras, e andámos horas a encontrá-la .
Foi preciso tirar uma porca a cada roda, para podermos seguir até Seia , com
gandes cautelas, em 4 rodas .
Um amigo nosso, mecânico, ajudou-nos a resolver o problema, e chegámos ao
Tortosendo, já quase de dia .

O grande sonho da minha Mãe, era ser professora, sonho que nunca viria a 
realizar, dadas as circunstâncias da vida .
Não foi professora oficial, mas foi ela que ensinou quase tudo, aos cinco fil-
hos . Sob a orientação e a mão firme do meu Pai, tudo fez, tudo ensinou, pa-
cientemente, desde o mamar, comer, vestir, comportar-se, o tomar banho, as 
pri-meiras letras e as primeiras contas .

Arrumava a casa, fazia a comida, costurava pequenos arranjos. preparava a 
comida para os cães, que eram quase família .
Não tinha tempo sequer,  para descansar um pouco .

Desvelava-se a tratar das doenças, quase sempre havia um dos filhos a neces-
sitar de cuidados, levava-nos ao Dr. Melo, uma espécie de João Semana moder-
do, que nos atendia a todos com grande cuidado .
Os honorários eram pagos com as melhores peças de caça que o meu Pai tra-
zia para casa .
Como já escrevi anteriormente, foi no Tortosendo (e um pouco antes 

na Covilhã) que os meus pais ganharam algum alento .

A lida da casa era agora mais fácil .
Mas a saúde ia minguando em, sentido contrário .

Lembro-me de, quando a minha Mãe ia à praça ou ao talho comigo,
ficava sempre por ali perto (aliás, na terra era tudo muito perto) e fica-
va à coca, à espera, para lhe trazer o saco das compras, durante a com-
prida e empinada rua até nossa casa . 

O trabalho com os cães era pesado .
Os cães(e as espingardas) eram os instrumentos de trabalho indispensá-
veis para a procura de alimento para todos nós .

Numa primeira fase da nossa vida, diríamos que a caça e a pesca, eram 
parte significativa da dieta familiar .

Mais tarde, o meu Pai, era um dos melhores caçadores do país, e tirava 
proveito da sua habilidade, para percorrer a zona centro de Portugal, 
para entrar nos torneios de Tiro aos Pratos, tendo ganho centenas de tro-
féus .

O problema de caçar muito e bem ( o meu Pai só caçava animais de penas,
pois os coelhos tinha sido dizimados e doentes com uma doença, chamada
Mixomatose, ainda não totalmente recuperada)
era a que a quantidade de bichos que  tinha que ser limpa e depenada, e 
isso era uma tarefa imensa, que em regra, calhava à minha Mãe .

Ás vezes, a mortandade calhava em tempo de férias, e então era ver a fa-
mília reunida em grupos, no concurso para ver quem depenava melhor e 
mais depressa .

Depois, ao serão,
regressava em forte, a música,
até alta madrugada .
.

Um Anjo que desceu à Terra .

Desde  nova muito nova, que a minha Mãe começou a cantar na Igreja, como solis-
ta do Côro da Igreja .
Talvez que esse facto tivesse contribuído para cimentar a união matrimonial .
Devia portanto nas festas e nos arraiais, e nos passeios à Serra, como por exemplo,
durante os magustos e almoçaradas na Senhora do Espinheiro, onde mais tarde ain-
da participei algumas vezes .
Não havia carros, e tudo era carregado serra acima, em alegre algazarra .
Passava-se o dia, comendo e bebendo, e a festa acabava por desembocar nas canti-
gar, até ao pôr do Sol .

Na igreja, até os não crentes entravam para ouvir cantar a minha Mãe, ao lado das
outras senhoras, entre elas várias das minhas tias .

Mais tarde, quando a vida se ajeitou um pouco, 
já na Covilhã, o meu Pai começou a ensinar um pouco de técnica de canto r demúsica,
de modo a realçar, ainda mais a voz de Anjo, com que a minha Mãe fora dotada ,

Foi então, que os fados e guitarradas se guinaram a uma altura ímpar, nos saraus fami-
liares e e de grupos de amigos .

A minha ouvia as musicas, escolhia as letras,e o meu Pai arranjava as músicas
e seleccionava os tons das cantigas . Uma parceria que iria durar para sem-
pre .
Cantava tudo o que era música portuguesa, desde o folclore, até às musicas co-
nhecidas internacionalmente, mas a sua grande paixão era o Fado .

A Escola da Noite .

Parece um convite à má vida. Antes fosse .

Já tinha ouvido falar nos debuxadores .
O meu Pai dizia-me que era uma profissão muito bem paga, e que devia ser uma
coisa boa para mim .
Já tinha feito alguns desenhos no Liceu da Covilhã . Tinha feito o busto do Almei-
da Garret, para a festa de homenagem do grande escritor .
As pessoas gostaram .
Foi quando me mandou tirar o curso, na Escola Comercial e Industrial da Covilhã,
a Escola Melo e Castro .

Não foi difícil adaptar-me aos novos estudos, que não à vida de quase escravo, que 
passei a ter .
Fiz alguns amigos, e, rapidamente me transformei no melhor aluno do Curso .

Eu era um menino, no meio dos adultos .

O ensino era muito técnico, mas para mim , muito fácil de apreender .
Tinham-me dado equivalência ao Ciclo Preparatório, de modo que entrei logo nas cadeiras
profissionais, num curso de 5 anos, que acumulava com o ensino do Liceu .

O CURSO DE MALANDRO .

Já tinha frequentado muitas das matérias que fazem um malandro, 
com uma boa aprendizagem absorvida nas várias escolas primárias que havia frequentado .
Formei-me nessas matérias, no Colégio Moderno da Covilhã, que tinha uma merecida reputação .
Acabei por ser Doutorado na escola da noite .
A Vida, fez-me Catedrático em em Ciências  da malandragem .

Transformei-me em malandro, cigano e vadio,
e tenho vindo a reciclar-me pela vida fora .
.

Com a minha vida à noite, algumas coisas melhoraram.
Deixei de ter que passear os cães, que me tinham arranjado uma série de pro-
blemas, tinha sido levado à Esquadra, porque um dos cães atirava-se às pessoas,
carteiros, fardas e mendigos .
O animal, depois de muitas peripécias, acabou por ser abatido no canil .

Acabou-se o tormento de aprender solfejo, o meu Pai não me deixava tocar acor-
deã, tinha que  tocar às escondidas .
E deixei de ter que dar satisfações sobre o que fazia ou não, durante as horas do
meu longo dia .
Ganhei a chave de casa aos meus 14 anos, por uma razão picaresca .

Logo nos primeiros dias da Escola, tinha chegado tarde a casa, já toda a gente 
dormia, e eu comecei a escalar o meu quarto, quando fui agarrado pelas pernas
por um guarda, e tive que fazer valer os meus direitos: 

Ó senhor guarda, essa casa é minha,
s.f.f., toque lá a campaínha, para a minha Mãe me abrir a porta .

Foi remédio santo .
No dia seguinte, o meu Pai entregou-me a chave da casa .

Os serões musicais .

Os ensaios das cantorias e os concertos iam-se sucedendo na minha ausência,
em regra aos fins de semana .

Depois de tirada a mesa e arrumada a cozinha, ia-se compondo o cenário .
Sacavam-se os instrumentos e compunha-se a sala .

Apareciam os tocadores habituais :
O Torres Pereira, na guitarra, o lança na viola, e os meus dois irmãos tocadores .
Vinha o fadista Marchão, e aparecia sempre mais um ou dois comparsas, para
compôr o ramalhete .
O meu Pai passava da guitarra, para o acordeão,

Mas a minha Mãe era a Raínha da Festa .

Fados e guitarradas, de ouvir e chorar por mais .

Se eu gostava de a ouvir cantar . 

Às vezes, quando a minha Mãe cantava nos agudos, eu ficava aflito, com o medo 
de poder falha alguma nota .
Mas nunca aconteceu .
A minha Mãe ia cantando noite fora, até que o esforço despendido a vencesse .

Uma vez, pela Páscoa, em casa da minha avó, mãe da minha mãe, depois de ter
passado o Jesus beijado, 
estava lançada a parte musical, juntavam-se mais ouvintes e participantes .
E o meu Pai dizia,

Maria Olinda, 
canta aquela de que tu gostas tanto .

Começava com chave de oiro .

Uma vez. lá em Seia, o meu primo Zé Manel armou a aparelhagem e começou a gravar o espectáculo, com locução e tudo .
A cassete com a música da-minha Mãe, andou por aí às cambalhotas, mas ainda hoje reli-
giosamente uma cópia .

A minha Mãe foi um anjo 
que desceu à terra para cantar .
.

O que mais me prende à vida
Não é o amor de ninguém
É que a morte de esquecida
Deixa o mal e leva o bem

Quando finalmente a minha Mãe começou a ter algum sossego, eis que a vida lhe viria 
pregar um enorme partida .

Os filhos estavam todos orientados nos seus estudos ou nas suas profissões,  com a minha 
Mãe gozando um merecido descanso e alguma melhoria de vida, eis que surge, como uma grande perturbação, o 25 de Abril, abençoado por quase todos, maldito para alguns, muito 
poucos .

O Tortosendo era conhecido como a aldeia vermelha, com uma grande predominãncia de 
adeptos do PCP .
Não sei ao certo o que se teria passado naqueles dias conturbados, mas correram boatos
reles contra o meu Pai .

Sei que a minha Mãe, já com a saúde muito abalada, passou a viver em estado e pânico .

Eram tempos difíceis, com as pessoas acirradas e revoltadas, desorientaads, procurando
arranjar fantasmas e bodes expiatórios pela pobreza e pela ignorância, de tantos anos  de 
dificuldade extremas .

A minha Mãe não resistiu,

e partiu, na flor da idade .

Ainda hoje vivo amargurado por ter tido a Revolução responsável, em parte, pelo desa-
parecimento  da pessoa que mais amava neste mundo,

e também pelo facto de nunca a ter conseguido compensá-la minimamente pelos sacrifí-
cios que por mim fez, durante toda a sua existência .

Ainda a levei a passear algumas vezes a passear, uma ou outra vez, à Serra, à Floresta,
às Sete Fontes, e à ribeira de Unhais .

Lembro-me de Ela e o Pedro terem ido molhar os pés, na água fria da Ribeira .

É talvez, uma das últimas imagens da minha Mãe .
.