" Para além do ser ou não ser
das palavras ocas,
penso nos outros, logo existo ".
Sinto vergonha por ser uma pessoa educada, sensível,
brincalhona, incapaz de fazer mal a uma mosca .
Não sou do tipo politicamente correcto, quando a polí-
tica tem vindo a ser erigida à custa de sucessivas incor-
recções e falácias, umas em cima das outras .
Serei sempre dos primeiros a gritar
O rei vai nú
mesmo quando ainda ninguém o consegue lobrigar .
Tenho vergonha de possuir a língua afiada, buscando
sempre achar o cisco no olho do parceiro, sem me acau-
telar a encontrar o argueiro no meu próprio olho .
Mas faço isso sem maldade, sim no intuito de tentar aju-
dar a colmatar um possível erro alheio .
As pessoas não toleram que algo seja posto em causa, mes-
mo quando essa atitude é feita com um bom propósito .
Sou um acérrimo crítico de mim próprio e sei reconhecer
quando algo vai mal no meu comportamento .
Mas os outros são de uma severidade extrema, quando fal-
ho nalgum pormenor .
Quando era puto, era o primeiro a encabeçar a lista dos
escolhidos para jogar à bola ou para qualquer outra brin-
cadeira .
Era a minha praia .
Hoje, viajo no último lugar da camioneta, e quase sem-
pre sem qualquer companhia .
Sou naturalmente espremido da dita sociedade bem compor-
tada e arrumada ,
E não é pelo facto de, por vezes, deixar escapar um ou outro
palavrão .
Sim, porque tenho a noção que dificilmente me concedem o
direito à diferença, sempre que a ocasião se proporciona,
qualquer que seja a natureza de tal diferença .
Tenho vergonha que tal aconteça tantas
vezes .
Sou o que se chama uma pessoa tolerada .
Só vêm a parte da minha carapaça externa .
Não se apercebem que, por detrás dessa aparência, existe outra
metade que os outros desconhecem ou não se interessam por co-
nhecer .
Esquecem-se do poeta que nos diz :
Que os desafinados também têm coração .
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