Não vou perorar sobre
os anos 40 e 50 .
Portugal foi sempre um País muito pobre, em ideias
e em recursos .
As dificuldades que se lhe apresentaram no início do
Séc. XX, com imensas trocas e baldrocas de paridos
e de governos, além de que Portugal foi extraordina-
riamente sangrado pela criminosa Grande Guerra
de 14/18, em que nos envolvemos, em defesa das nos-
sas Colónias.
Saltemos pois, para os anos 60, do Século passa-
do .
Cheguei a Lisboa em Out. de 1960, e entrei logo para
o Lar da AEIST, que iria ser a minha morada duran-
te 10 anos, situado no cimo da Av. Almirante Reis, no
fim da Cidade .
Cedo tomei conhecimento de um dos maiores bairros
da lata, que saía do Areeiro e ia desembocar no Bairro
da Buraca . Outro grande bairro ia da Av. Paiva Cou-
ceiro e terminava em Xabregas .Um terceiro bairro da
Lata, acompanhava a antiga estrada (militar) que di-
vidia os Conselhos de Lisboa e Loures .
E tantos outros .
Era impossível não conviver com a miséria sempre pre-
sente na Cidade, visível em tudo e sob todos os aspectos .
Muita gente ainda andava descalça pelas ruas, a mendi-
cidade era uma realidade cruel, e alimentada pelo hábi-
to generalizado da esmolinha .
Os cuidados médicos eram muito rudimentares, talvez
com a excepção do Programa Nacional de Vacinação .
Tratar dos dentes era um luxo só acessível a uma elite
e parte da classe médica esclarecida .
Andava-se na pendura dos eléctricos, para poupar no
custo dos bilhetes . Andar de táxi era um luxo só usado
para uma necessidade .
As refeições eram quase exclusivamente tomadas em ca-
sa, salvo em algumas ocasiões festivas ou em cerimónias
excepcionais .
Isto era o trivial nas cidades grandes .
Na província, sobretudo nos meios fabris, ou em famílias
muito numerosas, o nível de vida das populações baixava
muito .
.
Como tantas vezes, no decurso da nossa História, o pão
não chegava para todos, ou era muito mal distribuído .
Tivémos de ir manducá-lo, para outras paragens longín-
quas e, muitas vezes bastante inóspitas .
Deste modo, a Diáspora Portuguesa implantou-se pelo
Mundo inteiro, até em Ilhas que eu só conheci dos selos
publicados em França, como viria a ser o caso da Ilha de
Saint Bartelemy, nas Caraíbas, recentemente destruída
por um furacão, e onde labutavam mais de mil portugue-
ses, na construção civil .
Percorremos o Mundo, viajámos pelos 5 mares e, com
uma imensa capacidade de adaptação, arranjámos abri-
go onde houvesse capacidade para oferecer a nossa força
de trabalho .
Com a independência do Congo ex-Belga, milhares de
portugueses fixados nessas paragens tiveram que deman-
dar outros países em África e nas Américas, e até na Ásia .
Foi então que descobriram o Éden europeu, num Conti-
nente devastado pelo inferno nazista, e que urgia recons-
truir em força .
Foi a época doirada das gentes desvairadas que partiam
a salto de lapin, dezenas ou centenas de milhares, que se
acoitavam nos imensos bidonvilles de Paris e seus arre-
dores .
Vinha em bandos e mandavam, levar as famílias, logo que
pudessem, famílias inteiras com ranchos de filhos .
Terá sido, porventura, o maior êxodo de portugueses fugi-
dos de Portugal, só talvez comparável com a expulsão dos
Judeus pela Inquisição .
TRISTE PAÍS ESTE, que leva a vida
a expatriar-se, uma e outra vez, sem
poder vir morrer na terra onde nas-
ceu .
Sem pessoas para cuidar das terras, Portugal vai-se es-
vaíndo lenta, mas inexoravelmente,
até se transformar num deserto de pedras e mato selva-
gem, com o beneplácito de Costas e Marcelos, que só ago-
ra descobriram os nomes e as vidas dos Portugueses que
vivem e morrem, teimando sempre que um dia virão ser
contemplados no sorteio da vida .
Choram agora
fingidas lágrimas de crocodi-
lo,
que, infelizmente, chegam tarde demais .
As cheias de 1967 .
Tinha acabado o Curso e tinha passado por Coimbra, para
ser operado no Hospital Universitário, e aguardava a chama-
da para a tropa .
Passei por um difícil período de reflexão, no sentido de equa-
cionar o dilema de ir ou não ir para a guerra .
Acabei por arriscar ficar e aguardar as consequências .
Era uma questão muito delicada, essa do Serviço Militar .
A alternativa era desertar, e ter que viver no estrangeiro, sa-
be lá quanto tempo e em que condições, longe da Família e
dos amigos .
Em Outubro de 67,
tínha-me candidatado a um lugar de professor do ensino tecni-
co-profissional, na Escola Secundária Patrício Prazeres, em Lis-
boa .
Era aí que me encontrava no Dia 25 de Novembro, desse ano .
Pouca gente conheceu aquele lugar, à época .
Paredes meias com o infernal Bairro do Vale Escuro, numa zona
onde parecia ter caído uma bomba da IIª. Guerra, localizado nu-
ma terra de ninguém, habitada por um formigueiro de gente des-
graçada, onde escorria a céu aberto, uma enorme cloaca fétida,
que ia desaguar perto de Santa Apolónia, dir-se-ia que vivía-se na-
quele lugar, a meio caminho entre a terra e o inferno .
Nunca tinha atravessado o Bairro a pé, nem sequer de dia .
Naquela noite de 27 de Novembro, de 1967,
Estava a chover com intensidade, o que era normal naquela altura
do ano .
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Constava que tinha caído uma tromba de água na região de Lisboa .
O Conselho Directivo da Escola ia reunir, para dar instruções aos
alunos . Alguns dos professores resolveram sair o mais depressa pos-
sível, alguém tinha trazido o carro, e fugimos pela Av. Afonso III e
já foi difíl passar na Praça do Chile, pois a água já cobria as rodas
do carro .
Chovia que Seus a dava . Só de atravessar a rua, fiquei enxarcado
até aos ossos .
Fui deitar-me, com o meu rádio de pilhas, que nunca me abandona-
va, e fiquei a ouvir as notícias .
Na Praça de Espanha, um autocarro de dois andares tinha ficado pa-
rado, com os passageiros resguardados no piso superior, tiveram os
bombeiros que ir resgatá-los pelas janelas superiores .
Como o Campo Grande, a Praça era considerada uma zona facilmen-
te alagável, como tantas outras na Cidade de Lisboa - Algés, Avenida
da Índia, toda a zona ribeirinha do Rio Tejo .
Acabei por me deixar dormir .
A coisa estava a ficar muito feia, mas muito longe do que iria encon-
trar no dia seguinte .
Levantei-me cedo, como sempre, com a Cidade muito silenciosa, e fui
comprar o jornal .
Fiquei aterrado .
Há muito que se contavam os mortos, os jornaís já iam na 3ª. edição .
Fui tentar tomar o pequeno almoço na Pastelaria Veneza, ao Campo
Grande .
A Pastelaria, pura e simplesmente, tinha desaparecido .
Fiquei estarrecido .
Só então, comecei a ter a noção da enorme tragédia que tinha aconte-
cido durante a noite .
A pouco e pouco, é que íamos tomando conhecimento da enormidade
dos acontecimentos, à medida que a censura ia libertando algumas-
(poucas) notícias que iam surgindo a conta gotas, ou através de infor-
mações que nos eram transmitidas de boca em boca .
Os responsáveis políticos dessa altura, através da polícia política, obri-
garam a rádio e a televisão enviaram a seguinte ordem -
-a partir de agora, mais ninguém morre .
Tinha sido escondida a contagem dos corpos, que atingiu mais de sete-
centos, número que ainda hoje não está devidamente estabelecido .
Dava no entanto, para deixar à mostra, as miseráveis condições de vida
que então eram mantidas, em especial nas zonas de fronteira entre as
cidades e os miseráveis arrabaldes que as cercavam .
Foi uma descoberta estonteante, sobretudo para os jovens universitários
e para a esquerda de matriz católica e social .
Como era possível sobreviver em Portugal,
nos anos 60, em condições tão degradantes .
O drama foi completamente encoberto pelas autoridades portuguesas .
Recordo que, o Exército Português, através do Serviço Cartográfico, do
Exército, na Divisão de Fotografia e Cinema, curiosamente onde mais
tarde viria a ser incorporado, a tropa havia sido mobilizada para cobrir
o País com as reportagens da tragédia, quase em regime de exclusividade .
Foi aí, que acedi a muitas das imagens então publicadas por esse Serviço,
e muitas outras que só vieram à luz, nos nossos dias .
Era assim Portugal,
uma terra execrável e horrorosa .
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