quinta-feira, 17 de março de 2016

AS MINHAS AGUARELAS .

Não me lembro de fazer gatafunhos nas paredes 
das casas onde vivi em criança, nem nas escolas
que frequentei quando era puto . 

Tenho uma vaga ideia de uma das minhas avós me
falar do nosso tio Lucas, um avoengo que fazia fi-
guras de santos para as igrejas .
Não sei a que propósito me fazia essas conversas .

Naquele tempo não se visitavam museus .
Quando se ia a Lisboa, era para ver a Feira Popular,
a Torre de Belém ou o Estádio Nacional .

Foi no caminho da Horta, acompanhado do meu avô, 
que tomei contacto com o pintor coimbrão, de nome 
José Contente, que andava com o cavalete e a caixa 
das tintas, escolhendo os cantos mais giros da vila e 
do campo circundante .

Talvez que tenha tido então o meu 
clique artístico .

O homem enxotava-me sempre que me via, mas aca-
bou por entender que eu gostava de o ver pintar, pelo 
que me tornei uma companhia das férias grandes .

Lembro-me das minhas primeiras aguarelas, um peque-
no cartão com meia dúzia de cores coladas, pareciam pe-
dacinhos de barro .

E lembro-me da minha primeira aguarela, pintada nas
costas de uma caixa de chocolates, e que ainda hoje guar-
do .

Depois, já na escola, comecei a copiar as caras dos nossos 
escritores mais famosos .

Mas com tanta brincadeira com os meus amigos, como
poderia centrar a minha atenção nos bonecos .

O Prof. Ramos, uma fera, especialista em jogar à bola  
com a gente e cobrir-nos de pancadaria, tinha um filho
que fazia brinquedos em madeira, carros, barcos,
e eu gostava de o ver trabalhar , Com ele descobri as 
maravilhas da madeira de balsa, óptima para construir
aviões, que voavam e tudo, com a ajuda de um elástico  
retorcido .

O meu 2º. clique deu-se, quando um sapateiro alugou
a nossa loja, e eu passava horas às escondidas a vê-lo mano-
brar com maestria, aquela faca maluca, que cortava sola
como se fosse manteiga .

Negócio perigoso, que eu fora bem avisado .
Mas ficava à espera que a faca de sapateiro se gastasse, 
para eu depois a herdar .

E era em segredo que, de vez em quando ficava com um
dedo a sangrar, escondido no meu quarto, com medo de
descobrirem a minha paixão pela arte .
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