sábado, 6 de maio de 2017

A DERRADEIRA VIAGEM .

Vinham de noite, no barco da África, os caixotes com os
mortos caídos naquela guerra infernal .
Vinham devidamente escondidos, para não criar alarme 
social, para não dar nas vistas .
Às vezes nem as famílias sabiam dessa última viagem .

Não se sabe para onde os levavam, quem os acompanhava,
o enterro era segredo de Estado, as notícias não vinham nos
jornais .

Era a vergonha da Morte .

Os mais informados sabiam coisas que ouviam , mas  que não 
era possível contar .

Era norma na tropa, nunca filmar partidas de soldados para 
o Ultramar, proibidas as festas e os jantares no seio do Exér-
cito, podia comemorar--se a alegria do regresso das nossas
tropas .

Mas soldados mortos, nunca .

E que dizer dos feridos, dos estropiados, dos decepados.
Deslocavam-se nas suas cadeiras de rodas, em silêncio, à volta
dos hospitais militares, vários espalhados pela cidade de Lisboa,
e muitos outros nos hospitais da Província .
Povoavam a zona do Largo da Estrela, e nas imediações da Rua
Artilharia 1, 

Onde iam, o que faziam, como eram tratados, qual o seu destino,
era negócio das famílias atingidas .

E havia os mortos-vivos, em regra encaminhados para o Hospital
da Boa Hora, para os lados da Ajuda .

Guerra escondida, com cadáver à mostra .

Muitos militares iam para a Alemanha, tratar de  se adaptar às
próteses, que viessem devolver alguma dignidade aos nossos he-
róis .

Outros ficavam por cá, ao Deus dará .

Outros ainda viviam escondidos, até da própria família e dos ami-
gos .

Uma legião de soldados, na altura tratados como maluquinhos (só
mais tarde havia sido criado o paradigma do trauma de stress de
pós guerra), que colheu de surpresa muitos milhares de pessoas, 
saudáveis por fora, mas gravemente feridos por dentro, muitos sem 
nunca terem sabido qual a doença de que padeciam . 

Como classificar e contabilizar os horrores de uma guerra selva-
gem, idiota e sem qualquer sentido .

Já é tempo de falar verdade  aos portugueses, e honrar devidamen-
te todos os que, directa ou indirectamente, voluntários ou arrebanha-
dos à força, foram sacrificados nesta carnificina, em ple-
no Sec. XX .

A hipocrisia humana, não conhece limites .
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